HC-UFG

HC-UFG é referência no diagnóstico e tratamento da Doença de Chagas

Núcleo de Estudos da doença de Chagas do HC-UFG possui mais de seis mil pacientes cadastrados

Thalízia Ferreira

Descrita em 1909, pelo pesquisador Carlos Chagas, a doença de Chagas é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, cujo principal vetor de transmissão da doença era o Triatoma infestans, inseto popularmente conhecido como barbeiro. No final da década de 70, a área endêmica, ou seja, com risco de transmissão da doença de Chagas no Brasil devido à presença de vetores infectados, incluía 18 estados e mais de 2,2 mil municípios brasileiros.

Diante desse cenário, o Brasil adotou, a partir de 1975, ações sistematizadas de controle químico dos vetores, o que levou o país a receber, em 2006, a certificação internacional da interrupção da transmissão vetorial por T. infestans da doença, concedida pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Organização Mundial de Saúde (OMS). Apesar disso, estudos recentes estimam que existam em torno de 1,9 milhões de pessoas infectadas no Brasil. Em Goiás, a estimativa é de 200 mil pessoas infectadas, segundo a biomédica do Laboratório de Chagas do HC-UFG e técnica responsável pelo Programa Estadual de Doença de Chagas de Goiás, Liliane da Rocha Siriano. 

O Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG), vinculado à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), possui um serviço especializado de diagnóstico e tratamento aos portadores da doença desde 1978, o Núcleo de Estudos da doença de Chagas (NEDOCH). Em parceria com o Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP) da UFG, o NEDOCH do HC-UFG é composto pelo Laboratório de Chagas e o Ambulatório de atendimento ao chagásico. O Núcleo conta com especialistas em cardiologia, implante de marca passo, megaesôfago, megacólon, biomédicos e técnicos em laboratório.

No Laboratório de Chagas do NEDOCH são desenvolvidas pesquisas na área com referências nacional e internacional. Possui uma soroteca com mais de 35 mil soros armazenados em 18 congeladores, muitos dos quais conservados há mais de 20 anos. Participa do Programa de Qualidade dos Bancos de Sangue em todo o Brasil, gratuito e coordenado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Recebemos centenas de amostras de todo o país, as processamos e enviamos os resultados para a Fiocruz, que encaminha os kits para testar se os bancos de sangue públicos do Brasil estão trabalhando em boas condições”, explica o professor aposentado da UFG e médico imunologista do Laboratório de Chagas do HC-UFG, Alejandro Luquetti Ostermayer. Todo esse processo é realizado sob a coordenação da biomédica Suelene Brito do Nascimento Tavares.

Referência 

O Ambulatório de Chagas do NEDOCH se tornou um modelo de atendimento ao paciente infectado com o Trypanosoma cruzi. Está entre os poucos especializados no país para o tratamento da Doença de Chagas, que oferece acompanhamento ao paciente chagásico por uma equipe multiprofissional, formada por cardiologistas, gastroenterologista e proctologista. 

Hoje, o Ambulatório de Chagas do NEDOCH possui mais de seis mil pacientes cadastrados.  Entre estes está Irenis Maria Braz de Paulo, 68 anos, que há três anos realiza acompanhamento no HC-UFG.  “Descobri que sou portadora da doença de Chagas aos 29 anos de idade. Na época, fiz tratamento em outro hospital, com o Dr. Anis Rassi, que desenvolvia pesquisa sobre o assunto. Vivi muitos anos bem, até que, de três anos para cá, comecei a sentir alguns problemas no estômago. Na época, consultei com um gastro aqui no Hospital das Clínicas e vi que já estava no terceiro grau de problema do esôfago, devido à doença de Chagas. Conclui todos os exames de onde ela pode atacar mais e foi verificado que o esôfago foi onde ela mais agrediu. Então tive que fazer a cirurgia”, relatou. Agora, Irenis está realizando os exames necessários para dar encaminhamento ao tratamento do intestino, que começa a dar sinais de que também está sendo atingido pela doença.

Início das atividades

O Laboratório de Chagas do HC-UFG iniciou suas atividades em 1978, após a realização de uma pesquisa conjunta entre os professores da UFG Anis Rassi (cardiologista), Joffre Marcondes de Rezende (gastroenterologista, já falecido) e Franklin Neva, do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, que desenvolveram um estudo imunológico de pacientes nas fases crônica e aguda com o intuito de verificar se existia relação entre a progressão da doença, a sua forma clínica e os antígenos de histocompatibilidade HLA (Antígenos Leucocitários Humanos), codificados por genes que compõem o sistema imunológico humano. Para esse estudo, foram coletadas mais de 300 amostras de sangue de pacientes e utilizada a técnica de separação de células, considerada muito sofisticada à época, que foram congeladas em nitrogênio líquido, cuja utilização ainda não era comum, para a conservação dos mononucleares e das amostras de soro. O estudo, multicêntrico e oneroso, trouxe uma série de equipamentos para o Laboratório, como centrífugas e estufas de CO2, que não eram comuns à época.

O professor do IPTSP, Alejandro Luquetti, que havia publicado um estudo sobre as técnicas de separação dos mononucleares, deu continuidade ao serviço, fazendo a separação de células na fase aguda da doença de Chagas e a sua ativação por mitógenos.  Assim começaram as atividades do Laboratório de Chagas do HC-UFG. “Nessa época, o Laboratório de Chagas cresceu de tal forma que muitos trabalhos foram publicados em revistas internacionais, em conjunto com grupos do Rio de Janeiro e da Inglaterra e formou-se uma rede com as colaborações do Instituto Evandro Chagas e do professor Michael Miles, da Escola de Doenças Tropicais, uma escola tradicional de Londres, com mais de 100 anos de existência”, descreveu Luquetti. 

Posteriormente, a técnica de separação celular foi abandonada devido à sua complexidade e o Laboratório de Chagas continuou com a coleta de soros e a pesquisa em sorologia. “Já realizávamos estudos tentando entender um enigma que persiste até hoje: porque alguns indivíduos infectados com Trypanosoma cruzi continuam sem manifestações clínicas por toda a vida enquanto outros têm cardiopatia grave e morrem jovens. Isso ainda não foi precisamente descoberto, mas os estudos já avançaram bastante em relação a esse assunto. O Núcleo conta com mais de 100 trabalhos publicados sobre a doença”, afirma o professor.

Em 1984, além da coleta de soros, os exames de diagnóstico, que eram encaminhados para outros estados, como São Paulo e Paraná, passaram a ser realizados também no Laboratório de Chagas do HC-UFG. O professor Luquetti, que havia estado em Londres, trouxe as técnicas de ELISA e de imunofluorescência e, a partir de então, os exames de sorologia passaram a ser realizados em Goiás. O Laboratório de Chagas do HC-UFG também passou a validar os exames de todos os bancos de sangue de Goiás, fato que levou à publicação pela Organização Mundial de Saúde (OMS) do trabalho desenvolvido no Laboratório de Chagas do HC-UFG.

Quinze anos depois, em 1999, com o apoio dos médicos Dayse Elisabeth Campos de Oliveira (cardiologista), Glória Merheb Vaz (gastroenterologista especialista em megaesôfago) e Ênio Chaves de Oliveira (proctologista), teve início o Ambulatório de Chagas do HC-UFG. Com a colaboração do médico Cicílio de Moraes, então chefe do serviço de Emergência do HC-UFG, o HC-UFG conseguiu a destinação de uma verba do Fundo Nacional de Saúde (FNS) para a criação do Ambulatório de Chagas. “O ambulatório era bem simples, mas contava com uma equipe multiprofissional completa, formada por especialistas em cardiologia, gastroenterologia, proctologia, uma psicóloga e uma assistente social. Nessa época, o Laboratório de Chagas passou a receber mais de 100 doadores por mês dos bancos de sangue para a confirmação se o doador era infectado ou não. Se fosse confirmada a infecção pelo T. cruzi, o doador já era encaminhado para tratamento no Ambulatório de Chagas. Nós tínhamos, em média, 400 a 500 doadores por ano”, afirma Luquetti.

Atualmente, o Núcleo de Estudos da doença de Chagas do HC-UFG é um modelo de atendimento para muitos centros, como o de Cochabamba, na Bolívia, onde há um grande número de chagásicos. Para esses efeitos, uma equipe de médicos e técnicos em laboratório de Cochabamba fez estágio no serviço de Chagas do HC-UFG para implantar o modelo no país. 

Pesquisas

Há alguns anos, ainda não se falava na possibilidade de cura da doença de Chagas. Porém, pesquisas mostraram que a chance de cura de crianças portadoras da doença com idade até 1 ano é de 100%. É o que afirma Alejandro Luquetti. “Nestes casos, o tratamento é etiológico, que consiste na eliminação do parasita. Ele é obrigatório para as crianças que nascem de mães chagásicas e são congênitas, pois todos são curados em menos de 1 ano. Em crianças com até 12 anos de idade, dois terços delas são curadas”, ressalta. 

Sobre o tratamento etiológico em infectados acima dos 12 anos de idade, Luquetti diz que há evidências muito importantes de que, após 15 anos de tratamento, os anticorpos da pessoa diminuem muito e ela pode ser considerada curada. “A cura não quer dizer que as lesões que a pessoa tinha inicialmente irão reverter. Quer dizer que, se a pessoa tinha uma cardiopatia leve, ela seguirá com uma cardiopatia leve, ou seja, essa cardiopatia não irá piorar”, explica o especialista.

De acordo com Luquetti, as pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos da doença de Chagas procuram saber quem irá ter uma cardiopatia leve e quem terá uma cardiopatia grave. O tratamento da cardiopatia é variável, dependendo do seu estágio de evolução. “Em uma porcentagem baixa dos portadores da doença, cerca de 20% ou menos, o protozoário acomete o esôfago ou o colón, por isso a pessoa não consegue engolir bem ou sofre com a obstipação intestinal, o que tem correção cirúrgica”, diz Luquetti. 

Mesmo com o tratamento sintomático, é possível que o portador da doença tenha boa qualidade de vida.  “Hoje temos visto que muitos pacientes, após 15 anos de tratamento medicamentoso ou após a implantação do marca passo, voltam e estão bem”, afirma o professor.

Notificações

Em média, aproximadamente, 750 pessoas vão à óbito por ano, vítimas de complicações da Doença de Chagas. “Esse é um número muito expressivo e nós trabalhamos para melhorar os resultados, os índices, prolongar a vida com qualidade e o acesso desses pacientes”, afirma Siriano. 

Para identificar as regiões onde há mais pessoas infectadas pelo T. cruzi, o Ministério da Saúde exige a notificação compulsória da doença de Chagas, na sua forma aguda, para todo o território nacional. Em 2013, o Estado de Goiás foi o primeiro estado brasileiro que passou a realizar também a notificação compulsória estadual dos casos crônicos da doença. Em dezembro de 2018, o estado de Minas Gerais também iniciou a notificação compulsória dos casos crônicos e o estado da Bahia está em fase de implantação. 

Prof Luquetti UFGProfessor Alejandro Luquetti e a biomédica Liliana Siriano

Para o professor e médico Alejandro Luquetti, a notificação dos casos crônicos é importante, pois a doença de Chagas é uma doença esquecida e negligenciada pelo poder público. “Essas notificações servirão para chamar a atenção dos governantes, dos tomadores de decisões e dos ministérios respectivos para as regiões onde estão os doentes chagásicos e, assim, promoverem melhores condições de acesso aos serviços médicos, fornecimento de medicamentos e melhorias nos serviços de saneamento de determinados municípios”, avalia.

Segundo Siriano, a maior preocupação da Secretaria Estadual de Saúde de Goiás (SES-GO) é com as gestantes e os doadores, pois a maioria deles são assintomáticos e muitos nem sabem que são portadores da doença. O Estado de Goiás, em parceria com a APAE, oferece às gestantes o Teste da Mamãe, para o diagnóstico da doença de Chagas. O teste foi implantado inicialmente no estado do Mato Grosso do Sul e adotado em Goiás. “Hoje há uma cobertura de cerca de 97% das gestantes nos 246 municípios goianos. Os outros 3% não cobertos são referentes às gestantes que fazem pré-natal na rede privada, onde ainda não é oferecido o exame”, afirma Siriano. O Teste hoje é o principal marcador para o monitoramento das gestantes, pois a maioria delas não sabia que era infectada pelo T. cruzi. 

Segundo a biomédica, a realização das notificações dos casos crônicos é um trabalho complexo, pois ainda há profissionais do sistema público de saúde que não sabem da necessidade de se fazer a notificação. No primeiro ano de notificações, foram realizadas somente sete e hoje o Estado de Goiás possui um banco com 4.100 notificações registradas. “Essa aceleração das notificações em Goiás deu-se em função do comprometimento do Núcleo de Estudos da doença de Chagas (NEDOCH) do HC-UFG, pois o maior banco de dados de portadores de Chagas está aqui”, destacou a Siriano.

Como ser atendido no NEDOCH do HC-UFG

HC-UFG

De acordo com a biomédica Liliane Siriano, os pacientes são encaminhados para o NEDOCH do HC-UFG a partir de alguma suspeita clínica do médico da Atenção Básica. “Alguns pacientes vão ao médico quando estão com alguma queixa, como cansaço, dificuldade de deglutição ou constipação intestinal. Em outros casos, após a realização de um eletrocardiograma, o médico verifica que há um bloqueio de ramo (um bloqueio do sistema de condução elétrica do coração) e, diante da suspeita de Chagas, encaminha o paciente para o HC-UFG. 

No Laboratório de Chagas, esse paciente será submetido ao exame diagnóstico para a confirmação laboratorial da doença.  De acordo com a manifestação clínica dele, o paciente é encaminhado para o Ambulatório de Chagas do HC-UFG, ambos componentes do NEDOCH. 

O encaminhamento do paciente é feito via Central de Regulação da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia (SMS), que realiza o agendamento da primeira consulta no NEDOCH do HC-UFG.

Capacitações

Equipe UFG

Equipe do NEDOHC durante capacitação

Liliane Siriano ressalva que 70% dos portadores de Chagas poderiam ser atendidos no município de sua residência, pois muitos são assintomáticos. “Como o HC-UFG é um hospital de referência, todos os pacientes são encaminhados para cá. Isso acaba provocando um congestionamento do serviço”, afirma. Segundo ela, a proposta para a melhoria de atendimento ao chagásico é a capacitação dos médicos que atendem nos municípios. 

“O que temos proposto enquanto HC e Secretaria Estadual de Goiás (SES-GO) são ações para a melhoria da Atenção Básica desses pacientes, pois a maioria deles já têm idade avançada e um comprometimento geral do quadro de saúde. Muitos pacientes encontram dificuldades para realizarem o tratamento em Goiânia, pois muitos vêm de municípios distantes, como Posse, Campos Belos e dependem de transporte público e de uma casa de apoio para se hospedarem enquanto realizam o tratamento”, avalia Siriano.  A proposta, segundo ela, é capacitar os médicos da Atenção Básica para que os pacientes assintomáticos sejam atendidos no seu município de residência, centralizando no HC-UFG os casos com alterações moderadas a graves.

No último dia 19, foi realizada a primeira capacitação dos profissionais de saúde dos municípios da região norte e de Serra da Mesa, que fazem parte da macrorregião Centro-Norte do Estado de Goiás, onde está concentrado o maior número de pessoas infectadas pelo T. cruzi. Em novembro, será realizada a segunda capacitação, voltada para os profissionais de saúde dos municípios da região dos Pireneus e do Vale do São Patrício. As capacitações contarão com o apoio financeiro da Organização Internacional Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi).

Nessas capacitações, é apresentado um projeto da Telessaúde da Faculdade de Medicina da UFG, que desenvolveu um prontuário eletrônico, cuja plataforma poderá ser utilizada pelo médico da Atenção Básica e o médico do serviço de referência. “Há uma grande expectativa em relação a esse projeto, pois os médicos da Atenção Básica vão poder discutir caso a caso com os médicos do NEDOCH e espera-se que ele seja adotado como modelo em outros estados brasileiros”, diz Siriano. 

Ela acredita que será dada uma atenção maior à doença de Chagas após a declaração do dia 14 de abril como o Dia Mundial das pessoas afetadas pela Doença de Chagas. A decisão foi tomada durante a realização da 72ª Assembleia Mundial da Saúde, ocorrida em maio deste ano em Genebra. “Acredito que a instituição deste dia será um marco importante para a defesa de políticas públicas voltadas para os portadores da doença de Chagas”, ressalta. 

Fonte: Jornal UFG

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